Texto publicado em 17/11/15 na coluna "Endireitando", do jornal Notícia Urbana.
Na última década uma
expressão tornou-se por demais comum no Brasil, a ponto de ser banalizada:
“crime de ódio”. É impressionante como se diz que tudo agora é crime de ódio
(como também tudo virou “preconceito”, “homofobia”, “machismo”, “discriminação”
etc) e, pior, os jovens repetem esse conceito sem ao menos terem a noção exata
de que não se pode generalizar: até mesmo (e principalmente) opiniões políticas
contrárias ao pensamento politicamente correto são tidas como “crimes de ódio”,
mas não é bem assim.
O magnífico professor
Fernando Miller sempre ensinou a seus alunos na Faculdade de Direito de Campos algo
que, de tão simples, acaba sendo genial: “leia a lei”. Pois bem: o sucesso do
Direito após a Constituição de 1988 foi a mola propulsora para que conceitos
jurídicos passassem a ser usados de forma mais rotineira na sociedade, o que é
bom. Ocorre que tamanha foi a expansão desses conceitos que muitos deles
acabaram sendo apropriados por determinados grupos e repetidos como se mantras
fossem... mas não o são.
Não há lei no Brasil que
fale especificamente em “crime de ódio”, para começo de conversa. Há uma boa lei
(7.716/89) que visa combater o preconceito, mas neste caso trata-se de questões
ligadas a atos de segregação, onde as generalizações e exageros são outros (que
talvez caibam em outro texto) e não se pode fazer sempre, nem obrigatoriamente,
uma ligação direta e imediata entre tal lei e o uso hoje indiscriminado do
termo “crime de ódio”. Assim, a expressão hoje tem conotação mais política do
que jurídica: observe que determinados setores do pensamento político a todo
momento recorrem a esse argumento, na maioria das vezes para tentar
desqualificar o oponente. Lembremos que no começo do ano houve o atentado ao
jornal Charlie Hebdo e muitos – achando que o jornal era “direitista” (o que
não seria crime nem vergonha) – acusaram as vítimas de praticarem crimes de
ódio ao desenharem suas charges. Mas não consta que alguém tenha sido morto por
causa de tais desenhos, a não ser os chargistas. Se no mundo civilizado as
divergências são resolvidas pelo juiz e não pelos fuzis, onde está o verdadeiro
ódio, então? Nas charges de gosto duvidoso ou no ataque terrorista?
Chutar a imagem de uma santa
é crime de ódio; os nazistas praticavam crime de ódio; a Ku-Klux-Klan, o Boko
Haram, o Hamas, a Al-Qaeda, esses sim praticam crime de ódio, pois defendem
abertamente a aniquilação dos que lhes são contrários; os skinheads que agridem
pessoas exclusivamente por serem nordestinas também estão nessa lista. Mas o
maior exemplo hoje vem dos terroristas do Estado Islâmico: basta observar a
absurdez de seus discursos extremistas, onde todo o mundo civilizado é tratado
como escória (quando em verdade é exatamente ao contrário), sem contar a
extrema crueldade e frieza demonstrada nas execuções a sangue frio. A covardia
de atacar pessoas indefesas num show ou que jantavam na calçada de um
restaurante é tão obtusa quanto a nefasta prática de jogar homossexuais do alto
de prédios, cortar cabeças de “infiéis”, atear fogo e/ou afogar pessoas
enjauladas, sem contar as execuções sumárias coletivas.
Esses terroristas não
demonstram qualquer tolerância para com os valores da civilização ocidental e
nem mesmo para com os valores do Oriente Médio que não estejam de acordo com as
sandices por eles defendidas, sempre em nome de uma religião que não prega a
violência – a não ser nas interpretações tortas feitas por eles. Aí sim há
escancarado ódio à civilização ocidental, seus valores, seu modo de vida, sua laicidade.
Mas, curiosamente, pouco se fala nesse aspecto odioso: é que normalmente quem
mais fala em crime de ódio é simpatizante daqueles que mais o incitam, adotando
a velha prática de acusar os demais de fazê-lo, por acreditar que se está a agir
em favor de uma “causa” (ainda que em troca apenas de sanduíches de
mortadela)...
Assim, crime de ódio é
aquele que incita a prática de ódio ou dele decorre, como nos casos acima
citados. A mera opinião não pode ser assim considerada, sob pena de censurarmos
previamente todo o pensamento, negando a liberdade de expressão, que é tão cara
às democracias. Nos comentários de reportagens sobre os atentados terroristas
em Paris, por exemplo, é possível ver pessoas que, lamentavelmente, escreveram
coisas do tipo “a França teve o que
procurou” ou “tirem as suas mãos do
Oriente Médio”. Pode-se achar uma idiotice, mas não se trata de crime de
ódio. Como também não o é quando alguém manifesta saudades da ditadura militar
no Brasil, diz que “a crise é coisa de gente branca e de olhos azuis” ou pede
intervenção militar nos dias de hoje: são apenas opiniões isoladas e as pessoas que as proferem não estão a espalhar ódio racial, religioso ou
coisa que o valha. Vale lembrar: a liberdade de expressão abrange o direito de
falar besteiras.
O problema é que no Brasil
de hoje até mesmo piadas e opiniões jornalísticas e posicionamentos políticos
são tratadas até mesmo na imprensa como “crimes de ódio”, embora talvez sejam
apenas – a depender do gosto de quem ouve – piadas sem graça ou opiniões das
quais os acusadores discordam. Não é crível que pessoas que jamais agiram de
forma preconceituosa ou discriminatória sejam acusadas de “discurso de ódio”
quando apenas exercem sua liberdade de expressão! Não existem grupos – quer
majoritários, quer minoritários – que sejam imunes a críticas e opiniões
divergentes: se a idéia expressada não tem o intuito de espalhar o ódio, de
crime de ódio não se trata... simples assim.
Qualquer cidadão pode, por
exemplo – principalmente após os ataques recentemente sofridos pela França – ter
opinião no sentido de que seja necessário para o Brasil ter maior rigor na
entrada no território nacional de pessoas vindas de áreas controladas pelo
Estado Islâmico (até por conta das Olimpíadas 2016): nenhum discurso de ódio,
preconceito ou discriminação há nisso: é mera opinião! Se uma pessoa se
manifesta contra a concessão de benefícios como o “Bolsa-Família” a
estrangeiros, porque acha que o dinheiro oriundo dos impostos não deve ser
usado para além dos brasileiros, é direito dessa pessoa pensar e se manifestar
assim, sem que se possa tachar tal atitude de “crime de ódio”: muitas vezes
quem faz tais acusações apenas encontrou alguém que pensa diferente...
Em suma: o respeito às
diferenças é a base para a convivência democrática numa sociedade saudável, sem
que se pratiquem crimes de ódio – que devem ser punidos na forma da lei – e sem
que pessoas sem argumentos doutrinem os jovens a acreditar que todo discurso contrário
seja assim erradamente considerado.