No atual momento
de crise ética, política, econômica e institucional vivido pelo Brasil, muito
se ouve falar sobre algumas questões jurídicas, mas nem sempre há clareza a
respeito. A análise do chamado “espírito da lei” pode ajudar a esclarecer
certos assuntos, principalmente se associada à lembrança de alguns fatos
históricos.
Sobre a
expressão “crime de responsabilidade”, citada diariamente em todas as mídias, é
preciso dizer – por mais estranho que seja – que não se trata de crime propriamente
dito: crime de responsabilidade é uma infração
de natureza político-administrativa, não penal. A Constituição da República determina em lista
não exaustiva:
Art. 85. São
crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem
contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(...) V - a
probidade na administração;
VII - o
cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único.
Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de
processo e julgamento.
Assim, o crime de
responsabilidade tem julgamento político (feito por parlamentares, podendo haver perda do cargo e
inabilitação para o exercício de função pública por oito anos), não julgamento criminal (feito por um Juiz, podendo haver pena privativa de
liberdade ou outra prevista em lei). Um exemplo disso tivemos em
1992, quando o então Presidente da República sofreu impeachment por crime de
responsabilidade, sendo afastado pelo Poder Legislativo – questão política –
vindo posteriormente a ser absolvido pelo Supremo Tribunal Federal – questão
criminal.
Art. 86.
Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara
dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes
de responsabilidade.
Há
processos semelhantes para afastamento de governantes de outras esferas: há
pouco vimos também o caso de uma Prefeita no Maranhão que, fugindo da Polícia
(!?), foi destituída por ter se ausentado do município sem autorização da
Câmara Municipal por tempo superior ao permitido em lei – o que não é crime
comum, mas é crime de responsabilidade (CRFB,
arts. 89, 49, III e 29; DL 201/67, art. 4º, IX c/c art. 67 da Lei Orgânica de
Bom Jardim/MA).
Já impeachment é o afastamento de um
governante caso incorra nas situações previstas na Constituição e/ou nas leis,
normalmente pela prática de crime de responsabilidade. E que se diga: o
impeachment existe no Brasil desde a Constituição de 1891 e a Lei dos Crimes de
Responsabilidade é de 1950! Destaco na lei:
Art. 2º Os
crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis
da pena de perda do cargo (...)
Art. 9º São
crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
3 - não tornar
efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos
funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
6 - (...)
utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção (...);
7 - proceder de
modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.
A Lei de Responsabilidade
Fiscal também tem regras que, se desobedecidas, podem levar ao
impeachment. As famosas “pedaladas fiscais” (na prática e simplificando bastante: o governo pegar
dinheiro emprestado com bancos por ele controlados)
caracterizam crime de responsabilidade fiscal e evidentemente são proibidas
pela LRF:
Art. 36. É proibida a operação
de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a
controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
Art. 73. As
infrações dos dispositivos desta Lei Complementar serão punidas segundo (...)
a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 [Lei dos Crimes de
Responsabilidade] (...) e demais normas da legislação pertinente.
Assim,
abstraindo argumentos de natureza político-ideológica e considerando-se que o
impeachment existe no Brasil desde a Constituição de 1891 e a Lei dos Crimes de
Responsabilidade é de 1950, o fato é que não há golpe algum no processo de impeachment, pois se trata de aplicação da Constituição
e das leis em seus exatos termos contra quem eventualmente agir contra a
Constituição e as leis, não importando que o processo se dê no dia
seguinte à posse ou no fim do mandato: afinal
de contas, urnas não têm o condão de absolver ninguém da prática de crimes –
quer comuns, quer de responsabilidade.
Já na renúncia o governante abre mão de seu
mandato, para atenuar o sofrimento do país frente a uma crise ou por
perceber que não tem mais condições de se sustentar no poder. A última
verdadeira renúncia que tivemos à Presidência da República foi a de Jânio
Quadros, em 1961 (em 1992 Collor de Mello renunciou, mas
às vésperas de seu julgamento no Senado, quando já havia sido afastado pela
Câmara). Um caso famoso foi o do Presidente americano Richard Nixon, que em
1974 renunciou – para não sofrer impeachment – após ser “engolido” pelo
escândalo “Watergate”, referente a fatos ocorridos durante sua campanha de
reeleição. Recentemente o Presidente da Guatemala, Otto Molina, renunciou por suposto
envolvimento numa rede de corrupção, sendo preso em seguida.
Havendo
impedimento ou renúncia do Presidente assume o Vice, até completar o mandato. Só há nova eleição se houver cassação do
diploma pela Justiça Eleitoral, em decorrência de eventuais irregularidades
apuradas: neste caso, da mesma forma que o registro da candidatura é para
titular e vice, eventual cassação após o pleito atinge a ambos e é por isso que
tem que haver nova eleição (se faltarem
menos de dois anos para o fim do mandato a eleição é indireta, feita no âmbito
do Congresso Nacional). Na Constituição da República:
Art. 81. Vagando
os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição
noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 1º Ocorrendo a
vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os
cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional,
na forma da lei.
Por fim, cite-se que instituto
político que infelizmente não temos no Brasil é o “recall”, também chamado
de “referendo revocatório”: nele o povo é chamado a manifestar-se a respeito da
permanência ou não do governante no poder. Caso conhecido foi o de Arnold
Schwarzenegger, que se tornou governador da California/EUA, em 2003 após os
cidadãos daquele estado serem chamados a votar a respeito da manutenção ou não
do então governador no cargo. Porém, infelizmente quase nada se fala a respeito
disso quando o assunto é reforma política. Houvesse “recall” no Brasil e a
saída para a crise poderia ser menos traumática e até mesmo mais democrática,
pois de um lado evitaria ações oportunistas e de outro desqualificaria falsas
acusações de golpismo, já que o próprio povo faria a escolha sobre uma eventual
revogação do mandato.
O título do artigo é um dos versos de "A Revolta dos Dândis II",
de Humberto Gessinger, gravada em 1987 em disco homônimo pela
banda Engenheiros do Hawaii.