Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

terça-feira, 5 de março de 2019

Flash Gordon vai tentar ser Barbarella

Um dos problemas do mundo moderno é a incapacidade que muitas pessoas têm de conversar sobre assuntos de interesse coletivo sem demonizar as opiniões contrárias. Normalmente quem assim age o faz por se achar moral e intelectualmente acima dos demais, por supostamente estar ungido por uma espécie de "verdade divina" para defender direitos de minorias, como se as maiorias não tivessem direitos. Em razão desse proceder, parece não ser possível discordar delas sem receber a pecha de "preconceituoso" (sobre a diferença entre conceito e preconceito veja aqui; sobre o "direito de não gostar" leia aqui).

Quando esse tipo de comportamento vem de uma Corte Suprema como o STF, a segurança jurídica corre perigo: vemos há algum tempo o Supremo Tribunal adotando decisões que nada têm a ver com o texto constitucional, como que buscando ser um tribunal "prafrentex", quando sua função é guardar o texto constitucional, não reescrevê-lo (já escrevi a respeito em 2016, na postagem "Não me altere o samba tanto assim").

No caso da tentativa de criminalizar a homofobia (atualmente o placar está em 4x0), fica absolutamente clara tal preocupação: como é possível criar um crime sem uma lei formal e específica que o defina, como exige a Constituição? A ser assim tudo que se estudou nas faculdades de Direito brasileiras e tudo que o próprio STF determinou nas últimas décadas tem que ser rasgado! Como negar a evidente e indevida interferência do Judiciário em área do Legislativo, como de resto ocorre há muitos anos, com a cultura dos chamados "neoconstitucionalismo" e "ativismo judicial", que a título de guardar a Constituição acabam por rasgá-la?

A função do Supremo Tribunal é ser o guardião da Constituição, não lhe cabendo de guardião virar algoz, jogando por terra trechos inteiros da Lei das Leis apenas sob o argumento de que "a sociedade evoluiu". Pois bem, se é assim, que se deixe para os representantes dessa nova sociedade - os legisladores - a tarefa de modificar a Constituição!!!! O que não se pode aceitar é que a cada demanda proposta pelos "isentões" politicamente corretos seja feito um "puxadinho jurídico" para lhes dar razão e evitar que esperneiem como normalmente fazem quando são derrotados pelos fatos, pela vida real, pela História...


O hoje Ministro Alexandre de Moraes escreveu em 2012* sobre a necessidade de se impor limites ao ativismo judicial:



O bom senso entre o “respeito à tradicional formulação das regras de freios e contrapesos da Separação de Poderes” e “a necessidade de garantir às normas constitucionais à máxima efetividade” deve guiar o Poder Judiciário, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal na aplicação do ativismo judicial, (...) de maneira a balizar o excessivo subjetivismo (...) somente interferindo excepcionalmente de forma ativista, mediante a gravidade de casos concretos colocados e em defesa da supremacia dos Direitos Fundamentais.

No festejado artigo em que teve a coragem de levantar-se contra o neoconstitucionalismo, Humberto Ávila explica em detalhes o porquê de não ser correto permitir que o Judiciário substitua o Legislativo: já que o poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos. Além disso, afirma que não se pode defender a primazia da Constituição, violando-a... e que no Brasil o neoconstitucionalismo está mais para não-constitucionalismo, um movimento que “barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização”.


Segundo Lênio Streck, "Direito possui DNA. Os julgamentos não devem ser feitos a partir das apreciações subjetivas dos julgadores. (...) É melhor confiar no Direito ou no subjetivismo dos julgadores?" Já Ruy Espíndola afirmou que "é preciso rever o neoconstitucionalismo, pois defendê-lo seria uma contradição", porque "se antes quase não havia princípios constitucionais na cena jurídica, hoje não há princípio que baste para justificar decisões judiciais".


Em suma: hoje no Brasil, por determinação do Supremo Tribunal contra o texto expresso da Constituição, a Justiça do Trabalho não pode julgar causas envolvendo servidores públicos e vigoram a Lei Maria da Penha, o sistema de cotas raciais e o casamento homoafetivo, só para citar os casos mais conhecidos. Com base nesse mesmo raciocínio a Constituição foi rasgada para que uma presidente da República que sofreu impeachment não ficasse 8 anos inabilitada para o exercício de função pública, por ser mulher...



Humberto Ávila. Teoria dos Princípios.
Ed. Malheiros. São Paulo, 2005. p. 131
Se contra a Constituição o Supremo inventar de equiparar a homofobia ao racismo (temos no Brasil em média 400 casos por ano, frente a 60 mil homicídios), além de criar crime sem estar autorizado a fazê-lo, ainda o tornará inafiançável e imprescritível. Aí estaremos a um passo de ver pessoas presas por defenderem a família tradicional, por exemplo. Será como se Flash Gordon, a título de salvar o planeta Mongo da tirania do imperador Ming, quisesse tornar-se Barbarella, a heroína cuja função era salvar o planeta Terra...

Fontes: ÁVILA. Humberto Bergmann. Entre a Ciência do /Direito e o Direto da Ciência. Revista Eletrônica de Direito Público nº 17. Salvador, 2012 Porto Alegre.

MORAES, Alexandre de. As Súmulas Vinculantes no Brasil e a Necessidade de Limites ao Ativismo JudicialRevista da Faculdade de Direito da USP, vol. 107. Dezembro de 2012., p. 267, 268 e 283. 

STRECK. Lênio Luiz. Eis Porque Abandonei o Neoconstitucionalismo. Consultor Jurídico. 13 mar 2014.



OBS - O título da postagem é o primeiro verso de "Ficção Científica",
música de Renato Russo gravada pelo Capital Inicial no disco