Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

sábado, 5 de dezembro de 2015

O que é impeachment – aspectos jurídicos

Impeachment de Richard Nixon (EUA, 1974)
Nos dias de hoje temos visto seguidamente verdadeiras batalhas pelo convencimento da população a respeito do assunto mais falado em todo o país. Porém, nem sempre as informações são passadas à população de forma honesta: muitas manifestações sobre o tema são descaradas fraudes intelectuais, talvez movidas por excessivo apego ao poder ou desmedida sede de alcançá-lo. Não falo dos cidadãos em geral e sim dos formadores de opinião e até de autoridades que – por ingenuidade ou má-fé – simplesmente não param para ler as regras do procedimento sobre o qual estão a emitir opinião.

Regras existem... e muitas! Então, se há previsão na Constituição e nas leis do país, a primeira conclusão que se pode chegar sobre o assunto é que tachar como “golpe de estado” o manejo do impeachment dificilmente poderá ser ser creditado à ingenuidade, antevendo-se mesmo a má-fé: que raio de golpe é esse que está previsto desde 1891? Veja o artigo 53 de nossa primeira Constituição: 

Art 53 - O Presidente dos Estados Unidos do Brasil será submetido a processo e a julgamento, depois que a Câmara declarar procedente a acusação, perante o Supremo Tribunal Federal, nos crimes comuns, e nos de responsabilidade perante o Senado.

Como um instituto que há 23 anos foi tido como a redenção do país hoje é visto como golpismo? Em 1992, no voto condutor do Mandado de Segurança nº 21.654 (impetrado pelo então Presidente da República), o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou categoricamente:

“O impeachment traduz, em função dos objetivos que persegue e das formalidades rituais a que necessariamente se sujeita, um dos mais importantes elementos de estabilização da ordem constitucional, lesada por comportamentos do Presidente da República que, configurando transgressões dos modelos normativos definidores de ilícitos político-administrativos, ofendem a integridade dos deveres do cargo e comprometem a dignidade das altas funções em cujo exercício foi investido.”

Não entro aqui no mérito da questão. Falando em tese: o impeachment é um instrumento previsto na Constituição, cabível quando o governante – no caso o Presidente da República – praticar crime de responsabilidade (sobre o tema remeto o leitor à postagem “Ascensão e Queda São Dois Lados da Mesma Moeda, de 08/09/15). Ocorre que, apesar do nome, de prática de crime não se trata: a questão seria melhor se fosse chamada de “atribuição de responsabilidade”, porque talvez essa expressão revelasse melhor a verdadeira gênese do instituto, que não é da área criminal1 e sim político-administrativa2. Tanto a matéria não é criminal que a denúncia não cabe ao Ministério Público e sim a qualquer cidadão e o julgamento do Presidente é feito pelo Senado Federal, não pelo Supremo Tribunal.

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Destaque-se que até hoje não foi feita a lei específica exigida pela Constituição para casos do tipo. Longe de haver aí alguma nulidade, em razão disso vigora – naquilo que não contrariar a Constituição – a Lei 1.079/50 que, com a confirmação do STF, foi usada em 1992 no impeachment de Fernando Collor. Então, querer exigir que no processo de impeachment existam provas inequívocas de materialidade de crimes é errado (muito menos quando do início do procedimento, já que a Câmara não julgará nada (quem julga é o Senado) e, por isso, não haverá provas a serem analisadas num primeiro momento): a previsão das condutas na Constituição e na lei não é feita em lista exaustiva e sim em termos abertos, não se exigindo no crime de responsabilidade o rigor necessário para uma condenação por crime comum: a questão é política, como se vê na previsão legal do artigo 9º, item 7 da Lei, onde se lê que proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo é motivo para o afastamento do Presidente. Está nos anais do Supremo, na decisão acima citada:

“A acusação somente materializa-se com a instauração do processo, no Senado. Neste é que a denúncia será recebida, ou não. Na Câmara, relembre-se, ocorrerá, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político, em que a Câmara verificará se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem razoável procedência, não sendo a acusação simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas”.

Então, quem diz, por exemplo, que um quadro de corrupção sistêmica, “pedaladas fiscais” e/ou a inobservância clara de regras referentes à lei orçamentária dão margem a impeachment não é A, B ou C: é a lei. Se o Congresso entender que de crime de responsabilidade se trata, disso se tratará. Já a afirmação de que o cometimento de atos ilícitos em mandato anterior não pode ser considerado, é por demais estranha: se o ordenamento jurídico hoje autoriza a reeleição e não se tratam de atos estranhos às funções do governante, acaso nossas leis dariam ao Presidente um cheque em branco para transgredir a lei no último ano de seu primeiro mandato, sem que a responsabilidade por seus desatinos pudesse lhe ser cobrada posteriormente?

O artigo da Constituição que trata do início do procedimento na Câmara dos Deputados não especifica por quem o pedido de impeachment deve ser recebido, antes de passar por uma Comissão Especial e ir para a votação em plenário.

Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;

A Lei do Impeachment também não determina nada nesse sentido. Então é o Regimento Interno da Câmara dos Deputados que tem que suprir essa lacuna. E não há invenção alguma nisso, porque no MS nº 21.564 o Supremo assim entendeu já em 1992. No Regimento:

Art. 218. É permitido a qualquer cidadão denunciar à Câmara dos Deputados o Presidente da República, o Vice-Presidente da República ou Ministro de Estado por crime de responsabilidade.
..........
§ 1º A denúncia, assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, deverá ser acompanhada de documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo.
§ 2º Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos.

Assim – pouco importando tratar-se de pessoa de boa ou má índole – se o Presidente da Câmara  acata um pedido de impeachment apresentado na forma da lei, daí em diante resta apenas seguir o procedimento previsto em lei, porque regra geral pouco adiantará inventar motivos para recorrer ao STF, pois o Judiciário, em princípio, é mero expectador da contenda. Por exemplo: em 1992 o Supremo entendeu que o prazo para manifestação do denunciado (o então Presidente) seria de 10 sessões, não de 5 como prevê o Regimento Interno, mas além disso não foi.

Pelas regras constitucionais o processo em si ocorre no Senado Federal, mas somente após autorização da Câmara. O julgamento, neste caso, é dirigido pelo Presidente do Supremo Tribunal, num clássico exemplo de aplicação da famosa “teoria dos pesos e contrapesos”:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade (...); 
..........
Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.

..........
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
..........
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
..........
§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

Assim, se a Câmara dos Deputados autoriza por 2/3 de seus membros (342 votos) o início do processo contra o Presidente, o Senado Federal é comunicado, tem que iniciar o processo e com isso a autoridade fica suspensa do cargo, havendo prazo de 180 dias para o fim do processo. Nesse período o Vice-Presidente assume o cargo. Caso o Senado entenda, também por 2/3 (54 votos) que a atribuição de responsabilidade procede, o Presidente é definitivamente afastado e por oito anos não pode exercer qualquer função pública, eletiva ou não, sendo sucedido pelo até então Vice-Presidente, que estava no exercício da Presidência. Sendo o titular absolvido, retoma imediatamente o cargo para o qual foi eleito. 

Certo é que – independente do que cada pessoa torce para que aconteça ou do que de fato ocorrerá  em qualquer dos casos citados cumprem-se as regras constitucionais e legais em vigor no país e isso é extremamente saudável para a democracia3, não havendo qualquer chance de "perda de conquistas democráticas", porque tais conquistas são de toda a sociedade, do país e não deste ou daquele eventual ocupante deste ou daquele cargo – a menos que se trate de alguém ou de algum grupo que suponha ter o monopólio da virtude ou pretenda perpetuar-se no poder, usando apenas o argumento de que a ele se chegou através do voto: Hitler também foi eleito e vimos no que deu...
  
1 – Embora a Lei do Impeachment determine o uso subsidiário, no que couber, do Código de Processo Penal.

2 – Uadi Lammêgo Bulos (2009) define crimes de responsabilidade como “infrações político-administrativas atentatórias à Constituição, tipificadas na legislação federal”. O Supremo Tribunal Federal tem alguma jurisprudência nesse sentido, mas como o tema não é muito usual, pode ser que novas composições da Corte - e eventuais questões conjunturais - levem a entendimento no sentido de que se trate de norma penal, o que não parece ser uma tendência.
3 - A redemocratização do Brasil ocorreu em 1985. Apenas 7 anos depois o primeiro Presidente eleito em 30 anos sofreu impeachment e a democracia não ruiu. Por que motivo haveria ela de fracassar agora, passados 30 anos do fim da ditadura???

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Apesar de você, amanhã vai ser outro dia


Chico Buarque tem seu lugar na História da MPB. Teve muita importância durante os "anos de chumbo", mas hoje em dia - quando apóia organizações criminosas como o MST - é só um arremedo do grande compositor que já foi outrora: apesar da profunda crise vivida pelo país, ele acha que tudo está às mil maravilhas.

Neste histórico 02 de dezembro de 2015 - dia em que o Brasil começa a se reencontrar com sua história - relembro uma música feita por ele em 1971, queixando-se do então Presidente da República, o General Médici. A letra de "Apesar de Você" é bastante atual (será que é por isso que Chico não faz mais música de protesto?) e estava guardada há muito tempo para ser trazida aqui na ocasião oportuna:

Hoje você é quem manda: f
alou, tá falado
Não tem discussão...
A minha gente hoje anda falando de lado
E olhando pro chão, viu?

Você que inventou esse estado,

E inventou de inventar toda a escuridão
Você que inventou o pecado,
Esqueceu-se de inventar o perdão

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!

Eu pergunto a você:
Onde vai se esconder da enorme euforia?
- Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros (juro!)
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Este samba no escuro...

Você que inventou a tristeza

Ora, tenha a fineza de desinventar!
Você vai pagar - e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!
Ainda pago pra ver o jardim florescer,
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença!
E eu vou morrer de rir,
Que esse dia há de vir antes do que você pensa...

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente?
Como vai abafar 
Nosso coro a cantar
Na sua frente???

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

Você vai se dar mal, etc. e tal...

Lá lá lá lá laiá...


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Lá vem o Brasil descendo a ladeira...

Texto publicado em 01/12/2015 na coluna "Endireitando", no jornal Notícia Urbana.

Num país falido onde quase todo dia se vê um escândalo diferente e mais estarrecedor do que o anterior, a primeira notícia surpreendente de dezembro foi o risco de que as eleições 2016 tenham que ser feitas em cédulas1, em vez de urnas eletrônicas. A se confirmar a tragédia anunciada, seria um retrocesso sem tamanho, porque voltaríamos a 1994 – última votação sem urnas eletrônicas.

Não há dúvida de que o processo manual é infinitamente mais suscetível a fraudes do que as urnas eletrônicas (aprovadas por 94% dos brasileiros2), além do mais se considerarmos o cadastramento biométrico em curso, que já consumiu muito dinheiro público para ser deixado de lado exatamente na hora em que se prepara sua definitiva implantação. Voltar à votação com cédulas seria o fundo do poço para o Brasil e a perda de uma conquista dos brasileiros nos últimos 20 anos! Se considerarmos apenas a 98ª Zona Eleitoral (Campos/RJ), por exemplo: em 2010, 2012 e 2014 a apuração foi encerrada com sucessivos recordes, sendo os resultados conhecidos às 18:30 h, 17:58 h e 17:39 h, respectivamente. É impossível que numa apuração manual o resultado de uma Zona que tem 53 mil eleitores – divididos em 160 seções espalhadas por 29 locais de votação – seja conhecido apenas 39 minutos após o encerramento da votação! Convém lembrar que na época da votação em papel a divulgação do resultado ocorria alguns dias após a votação.

Apesar da incessante repetição do mantra “há fraude nas urnas eletrônicas3, deve-se lembrar que jamais se provou algo em desabono do atual processo de votação brasileiro. Além de falta de conhecimento, existem muitas fábulas, suposições e teorias da conspiração a respeito, mas nada que não possa ser facilmente esclarecido por quem trabalha na Justiça Eleitoral. As condições da eleição não podem ser repetidas nos testes feitos pelos críticos (que levantam questões teóricas como se práticas fossem): de que adianta provar que a 10 centímetros da urna é possível captar 0,1% da vibração das teclas, se no dia da votação ninguém terá como fazer isso? E, se tentar fazer, além disso não servir para nada, será preciso contar com a conivência de eleitores, mesários, pessoal de apoio da Justiça Eleitoral, fiscais de partidos, servidores, chefes de cartório, juízes, promotores... 

Assim, embora nenhum sistema eletrônico do mundo seja cem por cento seguro e seja sempre necessário reforçar a segurança eletrônica, o fato é que o Brasil tem a segurança necessária para garantir o sigilo do voto de todos os cidadãos, com um resultado rápido e correto, sem que isso seja alcançado em qualquer parte do mundo. Já se a votação for manual...

A prova de que não há fraude na votação? Vejamos: é por todos sabido que quatro dias após a eleição presidencial de 2014 o maior partido de oposição – derrotado por estreita margem de votos – pediu uma auditoria nas urnas eletrônicas, o que foi acolhido pelo TSE. Até de Campos foram remetidos “pen drives” com os resultados das seções. Em outubro último chegou-se à conclusão de que não houve fraude, o que foi solenemente ignorado pelas redes sociais4-5. Isso sem contar o fato de que todos os programas das urnas eletrônicas são postos à disposição dos partidos antes e depois das eleições...

Observemos os simples fatos de que antes da eleição é impresso um boletim em cada urna chamado de “zerésima” (para mostrar que todos os candidatos estão presentes naquela urna e com “zero” votos cada) e que alguns minutos após as 17 horas do dia da votação os mesários – que são cidadãos de bem, escolhidos entre as pessoas da própria comunidade – afixam na porta da seção eleitoral o resultado, com cópias que são fornecidas aos fiscais, imprensa, Ministério Público e exibidas por vários dias nos Cartórios Eleitorais. Esses mesmos números também são disponibilizados logo após a todo cidadão através dos sites dos Tribunais Eleitorais, publicados pelos jornais e compartilhados pela internet; ainda hoje se pode acessar o site do TSE e observar que... a quantidade de votos de cada candidato é a mesma que foi publicada às 17:05 h do dia da eleição e que em nenhum lugar há registro de diferença...

Existem falhas no processo eleitoral, mas não na votação ou totalização dos votos. Por exemplo: há um excesso de recursos à disposição dos candidatos; as leis não punem adequadamente a propaganda antecipada; falta estrutura para as equipes de fiscalização eleitoral conseguirem coibir os abusos na propaganda; nem sempre é possível reunir provas de que houve compra de votos etc. Também o fato de as seções eleitorais abrirem não ao mesmo tempo em todo o país e sim de acordo com o horário local é algo que pode ser revisto, porque permitiria que a apuração das eleições presidenciais não tivesse ser feita a portas fechadas até o fim da eleição no Acre, o que daria mais transparência a todo o processo.

Apesar de tudo, não parece crível que o processo eleitoral mais avançado do mundo venha de fato a ser atingido pela degradação institucional em curso no país: há evidente (e necessária) pressão dos Tribunais Superiores6 para minimizar os efeitos da crise que assola o país sobre as eleições, até porque embora seja sempre necessário comprar novas urnas, as que foram usadas em 2014 estão, em sua grande maioria, em condições de uso. De qualquer forma, a se confirmar a tragédia anunciada, seria um retrocesso sem tamanho... uma vergonha nacional.

Em suma: é sempre possível melhorar o processo eleitoral e isso é uma constante na Justiça Eleitoral brasileira (quem trabalha lá sabe disso). Porém, o tanto que o sistema eleitoral brasileiro evoluiu desde a implantação das urnas eletrônicas faz com que seja inimaginável que em 2016 retrocedamos à era do voto manual, pois isso representaria uma vergonha para o país (mais uma das muitas que estamos acostumados a ver) e um desrespeito ao princípio da proibição de retrocesso, tão falado no Supremo Tribunal Federal: um país que chega a ser o melhor do mundo em eleições não pode descer a ladeira como se fosse um trem sem maquinista: é maldade demais com nosso sofrido povo.
  
1 – Não confundir “voto em cédulas” (o que acontecia até os anos 90, com o voto escrito num papel e apuração demorada) com “voto impresso” (que se tenta aplicar no Brasil a partir de 2018: aqui a pessoa vota na urna eletrônica e confere seu voto numa impressora). Ambos seriam um retrocesso.
2 - Relatório Campanha de Esclarecimento – TSE Eleições2010. Instituto Sensus. Brasília, novembro de 2010. 
3 – Chama a atenção, por exemplo, a frase “as urnas eletrônicas não são usadas nos EUA”: quando as mesmas pessoas que usam tal argumento são perguntadas sobre a aplicação da pena de morte no Brasil (como se faz nos EUA), dizem que “não temos que copiar tudo que os EUA fazem.” Interessante, não?
4 - Venceslau, Pedro; Chapola, Ricado. Auditoria do PSDBconclui que não houve fraude em eleição de 2014. Jornal O Estado de São Paulo, 11 out 2015.
5 - Ulhôa, Raquel. Auditoria do PSDB nas eleiçõespresidenciais de 2014 não aponta fraude. Jornal Valor Econômico, 04 out 2015.
6 - Nota do TSE à imprensa. TSE. Brasília, 30 nov 2015.


O título da postagem é o nome de uma música de Pepeu Gomes e Moraes Moreira, lançada por este em 1979 (gravadora Som Livre).

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Estado Islâmico: os verdadeiros “crimes de ódio”

Texto publicado em 17/11/15 na coluna "Endireitando", do jornal Notícia Urbana.


Na última década uma expressão tornou-se por demais comum no Brasil, a ponto de ser banalizada: “crime de ódio”. É impressionante como se diz que tudo agora é crime de ódio (como também tudo virou “preconceito”, “homofobia”, “machismo”, “discriminação” etc) e, pior, os jovens repetem esse conceito sem ao menos terem a noção exata de que não se pode generalizar: até mesmo (e principalmente) opiniões políticas contrárias ao pensamento politicamente correto são tidas como “crimes de ódio”, mas não é bem assim.

O magnífico professor Fernando Miller sempre ensinou a seus alunos na Faculdade de Direito de Campos algo que, de tão simples, acaba sendo genial: “leia a lei”. Pois bem: o sucesso do Direito após a Constituição de 1988 foi a mola propulsora para que conceitos jurídicos passassem a ser usados de forma mais rotineira na sociedade, o que é bom. Ocorre que tamanha foi a expansão desses conceitos que muitos deles acabaram sendo apropriados por determinados grupos e repetidos como se mantras fossem... mas não o são.

Não há lei no Brasil que fale especificamente em “crime de ódio”, para começo de conversa. Há uma boa lei (7.716/89) que visa combater o preconceito, mas neste caso trata-se de questões ligadas a atos de segregação, onde as generalizações e exageros são outros (que talvez caibam em outro texto) e não se pode fazer sempre, nem obrigatoriamente, uma ligação direta e imediata entre tal lei e o uso hoje indiscriminado do termo “crime de ódio”. Assim, a expressão hoje tem conotação mais política do que jurídica: observe que determinados setores do pensamento político a todo momento recorrem a esse argumento, na maioria das vezes para tentar desqualificar o oponente. Lembremos que no começo do ano houve o atentado ao jornal Charlie Hebdo e muitos – achando que o jornal era “direitista” (o que não seria crime nem vergonha) – acusaram as vítimas de praticarem crimes de ódio ao desenharem suas charges. Mas não consta que alguém tenha sido morto por causa de tais desenhos, a não ser os chargistas. Se no mundo civilizado as divergências são resolvidas pelo juiz e não pelos fuzis, onde está o verdadeiro ódio, então? Nas charges de gosto duvidoso ou no ataque terrorista?

Chutar a imagem de uma santa é crime de ódio; os nazistas praticavam crime de ódio; a Ku-Klux-Klan, o Boko Haram, o Hamas, a Al-Qaeda, esses sim praticam crime de ódio, pois defendem abertamente a aniquilação dos que lhes são contrários; os skinheads que agridem pessoas exclusivamente por serem nordestinas também estão nessa lista. Mas o maior exemplo hoje vem dos terroristas do Estado Islâmico: basta observar a absurdez de seus discursos extremistas, onde todo o mundo civilizado é tratado como escória (quando em verdade é exatamente ao contrário), sem contar a extrema crueldade e frieza demonstrada nas execuções a sangue frio. A covardia de atacar pessoas indefesas num show ou que jantavam na calçada de um restaurante é tão obtusa quanto a nefasta prática de jogar homossexuais do alto de prédios, cortar cabeças de “infiéis”, atear fogo e/ou afogar pessoas enjauladas, sem contar as execuções sumárias coletivas.

Esses terroristas não demonstram qualquer tolerância para com os valores da civilização ocidental e nem mesmo para com os valores do Oriente Médio que não estejam de acordo com as sandices por eles defendidas, sempre em nome de uma religião que não prega a violência – a não ser nas interpretações tortas feitas por eles. Aí sim há escancarado ódio à civilização ocidental, seus valores, seu modo de vida, sua laicidade. Mas, curiosamente, pouco se fala nesse aspecto odioso: é que normalmente quem mais fala em crime de ódio é simpatizante daqueles que mais o incitam, adotando a velha prática de acusar os demais de fazê-lo, por acreditar que se está a agir em favor de uma “causa” (ainda que em troca apenas de sanduíches de mortadela)...

Assim, crime de ódio é aquele que incita a prática de ódio ou dele decorre, como nos casos acima citados. A mera opinião não pode ser assim considerada, sob pena de censurarmos previamente todo o pensamento, negando a liberdade de expressão, que é tão cara às democracias. Nos comentários de reportagens sobre os atentados terroristas em Paris, por exemplo, é possível ver pessoas que, lamentavelmente, escreveram coisas do tipo “a França teve o que procurou” ou “tirem as suas mãos do Oriente Médio”. Pode-se achar uma idiotice, mas não se trata de crime de ódio. Como também não o é quando alguém manifesta saudades da ditadura militar no Brasil, diz que “a crise é coisa de gente branca e de olhos azuis” ou pede intervenção militar nos dias de hoje: são apenas opiniões isoladas e as pessoas que as proferem não estão a espalhar ódio racial, religioso ou coisa que o valha. Vale lembrar: a liberdade de expressão abrange o direito de falar besteiras.

O problema é que no Brasil de hoje até mesmo piadas e opiniões jornalísticas e posicionamentos políticos são tratadas até mesmo na imprensa como “crimes de ódio”, embora talvez sejam apenas – a depender do gosto de quem ouve – piadas sem graça ou opiniões das quais os acusadores discordam. Não é crível que pessoas que jamais agiram de forma preconceituosa ou discriminatória sejam acusadas de “discurso de ódio” quando apenas exercem sua liberdade de expressão! Não existem grupos – quer majoritários, quer minoritários – que sejam imunes a críticas e opiniões divergentes: se a idéia expressada não tem o intuito de espalhar o ódio, de crime de ódio não se trata... simples assim.

Qualquer cidadão pode, por exemplo – principalmente após os ataques recentemente sofridos pela França – ter opinião no sentido de que seja necessário para o Brasil ter maior rigor na entrada no território nacional de pessoas vindas de áreas controladas pelo Estado Islâmico (até por conta das Olimpíadas 2016): nenhum discurso de ódio, preconceito ou discriminação há nisso: é mera opinião! Se uma pessoa se manifesta contra a concessão de benefícios como o “Bolsa-Família” a estrangeiros, porque acha que o dinheiro oriundo dos impostos não deve ser usado para além dos brasileiros, é direito dessa pessoa pensar e se manifestar assim, sem que se possa tachar tal atitude de “crime de ódio”: muitas vezes quem faz tais acusações apenas encontrou alguém que pensa diferente...

Em suma: o respeito às diferenças é a base para a convivência democrática numa sociedade saudável, sem que se pratiquem crimes de ódio – que devem ser punidos na forma da lei – e sem que pessoas sem argumentos doutrinem os jovens a acreditar que todo discurso contrário seja assim erradamente considerado.

sábado, 14 de novembro de 2015

Não procure paz onde paz não há

Os estarrecedores atentados terroristas em Paris deixaram clara a existência de uma guerra entre o mundo civilizado e a barbárie representada pelo Estado Islâmico (EI). O Presidente da França corretamente fechou as fronteiras do país, decretou medidas de exceção e afirmou que foi uma declaração de guerra.

A covardia de atacar pessoas indefesas num show, que jantavam na calçada de um restaurante ou passeavam num shopping é tão obtusa quanto queimar "espetos humanos" numa fogueira, jogar homossexuais do alto de prédios, cortar cabeças de “infiéis” ou colocar pessoas em jaulas onde são queimadas ou afogadas, sempre gravando tudo com requintes de crueldade (sem contar as execuções sumárias coletivas)Eles também tentaram infiltrar homens-bomba num estádio lotado, mas felizmente não conseguiram. O grupo EI não demonstra qualquer tolerância para com os valores da civilização ocidental e nem mesmo para com os valores do Oriente Médio (o Islã não prega a violência) que não estejam de acordo com as sandices por eles defendidas: por que deve o resto do mundo ter tolerância com eles?

Por que alguém ainda acha que é possível dialogar com gente que parte para atentados terroristas com coletes de explosivos presos ao corpo, para em caso de serem pegos detonarem a si próprios, tirando ainda mais vidas? Como prender essas pessoas? Como usar com eles os mesmos direitos que o mundo civilizado tanto preza, se tais direitos visam a preservação da vida, quando eles os usam para ceifar a vida de inocentes?

Quando esse mesmo grupo praticou o atentado contra a sede do jornal Charlie Hebdo houve quem culpasse as vítimas pelas charges que faziam, acusando-as de praticar “crime de ódio” quando apenas exerciam a liberdade de imprensa. É claro que todo direito tem limite, mas a civilização coíbe os excessos pela caneta do Juiz, não pelo gatilho de fuzis: se alguém faz discurso de ódio são os extremistas, que conclamam as pessoas a matar quem diz ou escreve coisas das quais eles discordam. Observe: por que motivo as redes sociais bloqueiam, por exemplo, o perfil de alguém que manifeste uma opinião supostamente “de ódio”, mas permitem que o EI faça propaganda sistematicamente por todo o mundo? Cadê a hashtag "#SomosTodosParis"??? 

Tendo em vista o fato de que a inteligência francesa levantou informações de que alguns dos terroristas entraram no país em meio aos refugiados vindos da Síria (até eu, que não sou especialista, já intuía isso), em breve começarão as fraudes intelectuais tentando culpar a França pelos atentados. O roteiro será culpar o nacionalismo, o preconceito e a islamofobia. Pois bem: nacionalismo não é algo ruim e, ao contrário, é fundamental – desde que sem exageros – para a união de um país; acusar os demais de preconceito e discriminação é, no mais das vezes, uma forma de fugir do debate sério, atribuindo à parte contrária uma pecha quase inafastável; islamofobia é um termo usado para, em geral, criticar apenas o natural medo causado pelos radicais jihadistas, como se alguém tivesse algo contra a religião como um todo, o que não é verdade. Recorrendo ao terrorismo, o grupo somente cria (ou se reforça) aquilo que eles dizem combater... mas é mentira: eles ao menos têm uma causa.

O fato é que não se pode mais fugir da guerra ao terror: é preciso vencer o Estado Islâmico, permitindo o retorno dos refugiados sírios (e demais) à sua nação e que os países do Oriente Médio possam se reencontrar com os caminhos que eles próprios decidiram e decidirão trilhar. Como os jihadistas do EI acham que morrem como mártires e não têm o menor apreço pela vida humana, o único antídoto possível é usar o veneno deles próprios, porque não é possível encontrar paz onde não há espaço para a paz.

O título da postagem é um dos versos escritos por Humberto Gessinger
na canção “Variações Sobre um Mesmo Tema”,
gravada pelos Engenheiros do Hawaii em 1988
no disco “Ouça o Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém”.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Lei 13.185/15 - A Lei da Frescura

Realmente o Brasil tem se tornado um lugar insuportável. Nossas escolas em breve terão um novo lema: "Brasil, uma pátria censora". 

Agora os vitimistas têm como reforço em sua cruzada contra as pessoas normais a Lei 13.185, de 06/11/2015, que a título de combater o "bullying" vai acabar por fortalecê-lo: toda e qualquer ação praticada no ambiente estudantil, por exemplo, poderá ser tachada como "bullying". 

Trata-se de uma lei exagerada, irrazoável, descolada da realidade. Vejamos como agora todo o universo estudantil pode ser enquadrado como "intimidação sistemática":

Art. 3o  A intimidação sistemática (bullying) pode ser classificada, conforme as ações praticadas, como:
I - verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente;
Só serão permitidas alcunhas como "Lindona", "Galã", "Belezinha", "Sabido" etc. Apelidos como "Girafa", "Café", "Babão", "Mantena", "Naregossauro" e "Sabonete" estão proibidos. Não, as crianças não podem mais brincar umas com as outras! Só se pode apelidar virtuosamente, embora ninguém saiba o que é isso.
..........
III - sexual: assediar, induzir e/ou abusar;
Dar em cima da colega da turma ao lado vai virar "bullying sexual". Se a menina não estiver a fim não precisará nem dar um fora no pretendente: ainda que haja verdadeira paixão, uma vez denunciado o jovem será enquadrado como tendo praticado assédio. É o fim do namoro nas escolas.
IV - social: ignorar, isolar e excluir;
Acabou o "não vou com a cara de Fulana". Quem não deixar a garota chata e catingosa que deu em cima do namorado da melhor amiga participar da conversa estará praticando "bullying social". "Espalhar bolinho" quando o colega chorão e boca-aberta chegar vai ser tido como "intimidação sistemática": as pessoas serão obrigadas a gostar umas das outras e com isso viveremos como Alice no País das Maravilhas...
V - psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar;
Quando seu time perder não haverá mais zoação na segunda-feira: está proibido infernizar a vida do colega. Mas... o que é "infernizar"? Condicionar o empréstimo do caderno a uma ajuda no estudo para a prova será tido como chantagem...
VI - físico: socar, chutar, bater;
Acabaram as brigas na porta da escola: basta "chamar para a porrada", levar um tapa e entregar o "agressor" à direção.
..........
VIII - virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social. 
É o fim dos tais "memes": sair mal na foto não será mais ser motivo para piada naquele grupo do WhastApp, já que a legenda terá que ser sempre algo do tipo "vejam como nosso nobre colega precipitou-se feliz em direção ao chão".

Interessante notar que a lei não estabelece sanção alguma e, ao contrário, tem como objetivo "evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil". Quem vai gostar disso serão as ONG's, que verão problemas nos quatro cantos das cidades, para fazer convênios com o poder público e combater a tal intimidação sistemática - mas só para cumprir a lei, claro.

Restará aos jovens aquela canção de Roberto Carlos:

"Vivo condenado a fazer o que não quero 
Então bem comportado às vezes eu me desespero 
Se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer 
Que isso ou aquilo não se deve fazer

Restam meus botões... 
Já não sei mais o que é certo 
E como vou saber 
O que eu devo fazer 

Que culpa tenho eu 
Me diga amigo meu 
Será que tudo o que eu gosto 
É ilegal, é imoral ou engorda?"

#NemPrecisaSerEspecialista

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Atirei o pau no gato

Texto publicado em 03/11/15 na coluna "Endireitando",
do jornal online Notícia Urbana.


No Brasil moderno as crianças aprendem na escola uma absurda versão da famosa cantiga de roda “Atirei o Pau no Gato”, que diz “não atire o pau no gato/Porque isso não se faz/O gatinho é nosso amigo/Não devemos maltratar os animais/Jamais”. Que graça tem cantar essa música de mãos dadas, fazer uma roda e não agachar no “miau”, já que este foi retirado da música? Será que temos o direito de tirar isso da infância de nossas crianças algo que usufruímos tão prazerosamente em nossa própria infância? Devemos recriminar as vovós que – evidentemente – cantam a versão original para seus netinhos???

É verdade, claro, que não devemos maltratar os animais e que o gatinho é nosso amigo. Mas também é verdade que nenhuma pessoa na face da Terra cresceu batendo em gatos por causa dessa ingênua canção! Eis o problema de se permitir esse tipo de maluquice que a título de estabelecer um determinado padrão de conduta acaba jogando por terra a cultura popular. Acaso nossos pais e avós seriam pessoas más e que incitavam a violência contra os animais? Certamente não, mas a praga do comportamento politicamente correto não se cansa de impor a todas as pessoas uma insuportável patrulha comportamental: em breve pretenderão determinar a cor da camisa que poderemos usar e de que sorvete deveremos gostar!

Não é necessário ser especialista em educação infantil para saber que crianças interpretam as coisas literalmente. Mas também não é necessário muito esforço para saber que exatamente com as cantigas de rodas que há gerações fazem parte do domínio popular tem-se uma excelente chance de mostrar para as crianças que não se pode interpretar literalmente o que se ouve. Engraçado: as pessoas que inventam essas teorias malucas cresceram ouvindo... “Atirei o Pau no Gato”!!!! Como pode?


A ser assim, algumas perguntas se apresentam: tentarão esses patriotas censurar os aplicativos gratuitos para celulares e tablets – hoje ao alcance de qualquer criança – onde é possível, por exemplo, bater à vontade no gatinho “Tom Falante”? Também será preciso mudar a letra de “Marcha Soldado”, por ser uma “ofensa” chamar o recruta de “cabeça-de-papel”, sob a ameaça de ficar “preso no quartel” se não marchar direito? “Samba-Lelê” precisará ser alterada, por incitar a violência ao dizer que mesmo doente e com a cabeça quebrada “precisava é de umas boas lambadas”? Seria “Boi da cara preta” uma música de cunho racista por associar tal cor ao malvado boi que “pega essa criança que tem medo de careta”? Em “Nana, Neném” dizer que “a Cuca vai pegar” cria trauma nas crianças? Há uma briga em “O Cravo e a Rosa”, onde aquele sai ferido e esta despedaçada: por acaso tal canção ensina às crianças que a violência contra a mulher é normal, já que no fim eles se casam? Reflitamos...

Há gerações que essas músicas são ingenuamente cantadas por crianças de todos os lugares!!! Mas no frenesi virtual das redes sociais as coisas se espalham de forma viral, fazendo com que as versões “politicamente corretas” sejam difundidas sem que as pessoas se dêem conta do mal que estão fazendo. Será que a Xuxa de 2015 enquadraria a Xuxa de 2004 na “Lei da Palmada” porque a mãe do Elefante Trombinha ameaçou lhe dar uma palmada “bem na bundinha”, caso ele não se comportasse? O que se diria hoje de uma música cujos versos fossem “Comer tatu é bom/Que pena que dá dor nas costas/Porque o bicho é baixinho/E é por isso que eu prefiro as cabritas”? Certamente a banda seria defenestrada sob a acusação de “incitar maus-tratos contra animais” ou coisa pior, mas seria – como foi nos anos 90 – só besteirol típico dos Mamonas Assassinas (que as crianças adoravam, por sinal).

O fato é que na época em que se “atirava” o pau no gato, uma criança enfurecida que quebrasse a escola era devidamente punida e seus pais se envergonhavam disso. Hoje em dia os professores deixam de agir por medo de punições e ações administrativas e judiciais... e os pais ainda posam de vítimas, querendo “processar a escola” (escola tem que dar só o ensino; quem tem que dar educação é a família): que cantiga de roda será culpada por isso? Sugiro uma nova versão e espero que os especialistas gostem: “Atirei o pau no professor/Porque ele é opressor/Já que o ECA é nosso amigo/Não devemos respeitar nem nossos pais/Jamais!

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Não existe obrigação de parar o carro para o pedestre passar

Texto publicado na coluna "Endireitando", que assino quinzenalmente no Jornal Notícia Urbana.

Neste país já estamos fartos de saber que muita coisa errada é tida como certa. Aliás, o mote desta coluna é exatamente mostrar que há casos em que idéias que estão arraigadas na cabeça das pessoas podem não ter fundamento jurídico ou não ter a extensão que costuma lhes ser dada. Exemplo disso é a confusão que se faz quando o assunto é o direito dos pedestres que – por serem inegavelmente o lado mais frágil do trânsito – acabam sendo tidos como necessariamente “bonzinhos”, restando aos motoristas a pecha de “maus”, naquele clima de “nós contra eles” que tomou conta da sociedade brasileira na última década.

Repare que normalmente se culpa o motorista pelo acidente, mas quase ninguém se posiciona contra o pedestre: mesmo em casos onde há todas as evidências, falar que determinado atropelamento foi causado por imprudência do transeunte é correr risco de ser tachado como favorável à violência no trânsito, etc. Aqui também não se fala contra: apenas não se fala obrigatoriamente a favor, porque a lei e os fatos é que estão em questão. 

Da mesma forma que não se exige que a pessoa seja especialista em Direito para saber que não se pode interpretar um artigo de lei sem analisar o contexto em que ele está inserido (que é o que mais se vê hoje em dia), também não precisa ser especialista em trânsito para observar certos comportamentos no cotidiano das cidades: basta sair às ruas....

Uma coisa é a necessária e importante conscientização dos motoristas para evitar atropelamentos (art. 29, § 2º do Código de Trânsito Brasileiro – “CTB”); outra coisa completamente diferente é tratar como se fosse desnecessária a conscientização também dos pedestres quanto às suas obrigações para evitar atropelamentos. Recentemente o Instituto de Trânsito de Campos fez uma correta campanha a respeito, onde foi ressaltado o quanto é importante o comprometimento de todos para a segurança no trânsito, até porque ninguém é o tempo todo só pedestre, motorista, motociclista ou ciclista: por vezes encarnamos mais de uma dessas figuras no mesmo dia.

Ocorre que na maioria das vezes as autoridades de trânsito do país e a imprensa em geral tendem a tratar o pedestre como única vítima do trânsito, esquecendo-se que pedestres também podem ser multados no trânsito – mas isso depende de uma regulamentação que nunca será feita – e que o cidadão médio não sai de casa querendo atropelar ninguém, embora possa também passar por uma fatalidade: para as pessoas normais é um transtorno enorme ver-se envolvido num fato que levou alguém a se machucar ou mesmo à morte (evidentemente trata-se aqui dos cidadãos comuns, não dos que usam carros como armas ou dirigem bêbados). Pouco se noticia que já houve caso onde, por imprudência, um pedestre foi condenado a pagar multa ao atropelador... e as redes sociais crucificam o motorista, mesmo quando a vítima ziguezagueava, bêbada, em local escuro de uma rodovia federal...

No Brasil de 2015 algumas observações são necessárias, ainda que evidentes: em regra a rua foi feita para os carros, destinando-se aos pedestres a calçada (CTB, art. 254, I), de onde se conclui que, em regra, quando uma pessoa é atropelada na rua, a culpa é dela (se a vítima é colhida sobre a calçada ou sob o sinal vermelho, aí sim a questão se vira contra o motorista); há no CTB proibições específicas também para pedestres; consta que os pais ainda ensinam os filhos a “olhar para os dois lados antes de atravessar a rua”; não há notícia de pai ou mãe que ensine às crianças que “na faixa de pedestre pode sair atravessando, porque os carros têm que parar para você passar”, há?

É simples: onde há faixa de pedestres e sinal de trânsito o pedestre tem que aguardar sua vez? Tem; onde há faixa e agente de trânsito também é preciso esperar? Sim, é. Por que motivo então as pessoas acham que onde se tem apenas a faixa pintada no chão elas têm o direito de sair atravessando feito loucas, forçando carros que estão próximos e em certa velocidade a freadas bruscas, com risco de acidente? Acaso uma batida entre dois carros é “melhor” do que um atropelamento? Não! Ambos devem ser evitados. Ocorre que, se em determinado local a autoridade pública não instalou semáforo nem deslocou para lá agentes de trânsito, subentende-se que não há movimento tão grande a ponto de justificar tais ações e que a faixa de pedestres está apta a resolver o problema naquele trecho: basta o pedestre aguardar a hora certa e o motorista prestar atenção redobrada ao se aproximar do local e a travessia pode ser feita de forma segura.

Todos lembram de citar que Código de Trânsito (art. 70) prevê que o pedestre tem direito a prioridade, mas se esquecem de que a mesma lei também prevê (art. 69) que “para cruzar a pista de rolamento o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta, principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos, mesmo na faixa de pedestres. Assim, para ter direito à prioridade, antes o cidadão tem que verificar se é possível atravessar a rua sem causar acidentes – exatamente como nossos pais nos ensinaram e nós ensinamos a nossos filhos.

Porém, o que frequentemente se vê hoje é a conduta arrogante de muitos pedestres que adentram a faixa mesmo quando há risco e olham em tom desafiador para os motoristas (como que a dizer: “dane-se o mundo, porque eu estou passando”). Por outro lado, já se viu motorista parando o carro em plena Av. Pelinca e fazendo sinal para uma ou duas pessoas (que ainda estavam na calçada) passarem – mesmo que para fazer essa “boa ação” dez carros tenham sido deixados a esperar. Pior: há registro de autoridades de trânsito que fazem campanhas contra os carros (“a cidade deve ser mais dos pedestres e menos dos carros”: como assim???), que acham que a cada faixa de pedestres o veículo tem que parar – para só depois retomar a marcha – ou que é certo parar o trânsito de ruas movimentadas para a passagem de uma só pessoa, mesmo a 20 metros de um sinal...

Se toda vez que um pedestre colocar o pé na faixa os carros tiverem que parar, o trânsito vai dar um nó em todas as cidades (lugares como Brasília e Gramado são casos à parte); o Código de Trânsito (art. 69, II) exige que o pedestre espere, conforme o caso, o semáforo ou a ação do guarda de trânsito para cruzar a pista. Com mais razão ainda exige-se que o pedestre verifique se há condição de realizar a travessia, não podendo atravessar a rua não ser dessa forma: se o transeunte já estiver atravessando segundo as citadas regras, aí sim – e só assim – o carro deve dar prioridade ao pedestre.

Quando a lei entende que o veículo tem que parar o faz expressamente: o Código prevê multa para quem “deixar de parar” o veículo em passagens de nível (onde passam trens – art. 212) ou quando alcançar passeatas, desfiles, cortejos etc (art. 213). Porém, no artigo logo a seguir a multa é para quem “deixar de dar preferência de passagem ao pedestre” (art. 214), não se usando a expressão “deixar de parar”. Só há preferência para o pedestre se ele antes verificar se é possível atravessar (não existe na lei essa história de esticar o braço, levantar o polegar nem “colocar o pé na faixa”: não há esse automatismo): caso se tratasse da mesma regra o verbo seria o mesmo...

Detalhe que quase ninguém percebe, mas que está no chamado “espírito da lei”: se todos fizerem a sua parte não precisa parar o trânsito e não há risco para o pedestre. Se foi necessário frear de forma brusca é sinal de que o pedestre errou, por não avaliar as condições de atravessar com segurança, pois não se pode entrar na faixa para fazer os carros pararem: o certo é usar a faixa após verificar se é seguro atravessar e em decorrência disso é que os carros devem dar preferência. Observe: se o pedestre avalia o momento certo de atravessar, vai chegar ao outro lado da rua em sem se arriscar; se de fato usa a faixa de forma segura, o carro não precisa parar, bastando diminuir a marcha, se for o caso, para dar passagem. A preferência para o pedestre não é um cheque em branco, não o autoriza a se jogar na frente dos carros!

A verdadeira intenção do Código é a busca de harmonia no trânsito: é verdade que o motorista tem que respeitar o pedestre, mas por que a recíproca não seria verdadeira? E tudo isso (que está na lei, não na cabeça de quem escreve este texto, nem na de quem inventa campanhas irresponsáveis do tipo “basta pisar na faixa e pode atravessar”) confirma que, com as leis que temos e sem que seja “forçada a barra”, não existe obrigação de parar o carro para o pedestre passar.