Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Ascensão e Queda São Dois Lados da Mesma Moeda (2)

Coluna publicada em 08/09/2015 no jornal Notícia Urbana 

No atual momento de crise ética, política, econômica e institucional vivido pelo Brasil, muito se ouve falar sobre algumas questões jurídicas, mas nem sempre há clareza a respeito. A análise do chamado “espírito da lei” pode ajudar a esclarecer certos assuntos, principalmente se associada à lembrança de alguns fatos históricos.

Sobre a expressão “crime de responsabilidade”, citada diariamente em todas as mídias, é preciso dizer – por mais estranho que seja – que não se trata de crime propriamente dito: crime de responsabilidade é uma infração de natureza político-administrativa, não penal. A Constituição da República determina em lista não exaustiva:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(...) V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Assim, o crime de responsabilidade tem julgamento político (feito por parlamentares, podendo haver perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública por oito anos), não julgamento criminal (feito por um Juiz, podendo haver pena privativa de liberdade ou outra prevista em lei). Um exemplo disso tivemos em 1992, quando o então Presidente da República sofreu impeachment por crime de responsabilidade, sendo afastado pelo Poder Legislativo – questão política – vindo posteriormente a ser absolvido pelo Supremo Tribunal Federal – questão criminal.

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

Há processos semelhantes para afastamento de governantes de outras esferas: há pouco vimos também o caso de uma Prefeita no Maranhão que, fugindo da Polícia (!?), foi destituída por ter se ausentado do município sem autorização da Câmara Municipal por tempo superior ao permitido em lei – o que não é crime comum, mas é crime de responsabilidade (CRFB, arts. 89, 49, III e 29; DL 201/67, art. 4º, IX c/c art. 67 da Lei Orgânica de Bom Jardim/MA).

impeachment é o afastamento de um governante caso incorra nas situações previstas na Constituição e/ou nas leis, normalmente pela prática de crime de responsabilidade. E que se diga: o impeachment existe no Brasil desde a Constituição de 1891 e a Lei dos Crimes de Responsabilidade é de 1950! Destaco na lei:

Art. 2º Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo (...)
..........
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
..........
3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; 
..........
6 - (...) utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção (...);
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.

A Lei de Responsabilidade Fiscal também tem regras que, se desobedecidas, podem levar ao impeachment. As famosas “pedaladas fiscais(na prática e simplificando bastante: o governo pegar dinheiro emprestado com bancos por ele controlados) caracterizam crime de responsabilidade fiscal e evidentemente são proibidas pela LRF:

Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
..........
Art. 73. As infrações dos dispositivos desta Lei Complementar serão punidas segundo (...) a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 [Lei dos Crimes de Responsabilidade] (...) e demais normas da legislação pertinente.

Assim, abstraindo argumentos de natureza político-ideológica e considerando-se que o impeachment existe no Brasil desde a Constituição de 1891 e a Lei dos Crimes de Responsabilidade é de 1950, o fato é que não há golpe algum no processo de impeachment, pois se trata de aplicação da Constituição e das leis em seus exatos termos contra quem eventualmente agir contra a Constituição e as leis, não importando que o processo se dê no dia seguinte à posse ou no fim do mandato: afinal de contas, urnas não têm o condão de absolver ninguém da prática de crimes – quer comuns, quer de responsabilidade.

na renúncia o governante abre mão de seu mandato, para atenuar o sofrimento do país frente a uma crise ou por perceber que não tem mais condições de se sustentar no poder. A última verdadeira renúncia que tivemos à Presidência da República foi a de Jânio Quadros, em 1961 (em 1992 Collor de Mello renunciou, mas às vésperas de seu julgamento no Senado, quando já havia sido afastado pela Câmara). Um caso famoso foi o do Presidente americano Richard Nixon, que em 1974 renunciou – para não sofrer impeachment – após ser “engolido” pelo escândalo “Watergate”, referente a fatos ocorridos durante sua campanha de reeleição. Recentemente o Presidente da Guatemala, Otto Molina, renunciou por suposto envolvimento numa rede de corrupção, sendo preso em seguida.

Havendo impedimento ou renúncia do Presidente assume o Vice, até completar o mandato. Só há nova eleição se houver cassação do diploma pela Justiça Eleitoral, em decorrência de eventuais irregularidades apuradas: neste caso, da mesma forma que o registro da candidatura é para titular e vice, eventual cassação após o pleito atinge a ambos e é por isso que tem que haver nova eleição (se faltarem menos de dois anos para o fim do mandato a eleição é indireta, feita no âmbito do Congresso Nacional). Na Constituição da República:

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

Por fim, cite-se que instituto político que infelizmente não temos no Brasil é o “recall”, também chamado de “referendo revocatório”: nele o povo é chamado a manifestar-se a respeito da permanência ou não do governante no poder. Caso conhecido foi o de Arnold Schwarzenegger, que se tornou governador da California/EUA, em 2003 após os cidadãos daquele estado serem chamados a votar a respeito da manutenção ou não do então governador no cargo. Porém, infelizmente quase nada se fala a respeito disso quando o assunto é reforma política. Houvesse “recall” no Brasil e a saída para a crise poderia ser menos traumática e até mesmo mais democrática, pois de um lado evitaria ações oportunistas e de outro desqualificaria falsas acusações de golpismo, já que o próprio povo faria a escolha sobre uma eventual revogação do mandato.

O título do artigo é um dos versos de "A Revolta dos Dândis II", de Humberto Gessinger, gravada em 1987 em disco homônimo pela banda Engenheiros do Hawaii.

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