Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Lá vem o Brasil descendo a ladeira...

Texto publicado em 01/12/2015 na coluna "Endireitando", no jornal Notícia Urbana.

Num país falido onde quase todo dia se vê um escândalo diferente e mais estarrecedor do que o anterior, a primeira notícia surpreendente de dezembro foi o risco de que as eleições 2016 tenham que ser feitas em cédulas1, em vez de urnas eletrônicas. A se confirmar a tragédia anunciada, seria um retrocesso sem tamanho, porque voltaríamos a 1994 – última votação sem urnas eletrônicas.

Não há dúvida de que o processo manual é infinitamente mais suscetível a fraudes do que as urnas eletrônicas (aprovadas por 94% dos brasileiros2), além do mais se considerarmos o cadastramento biométrico em curso, que já consumiu muito dinheiro público para ser deixado de lado exatamente na hora em que se prepara sua definitiva implantação. Voltar à votação com cédulas seria o fundo do poço para o Brasil e a perda de uma conquista dos brasileiros nos últimos 20 anos! Se considerarmos apenas a 98ª Zona Eleitoral (Campos/RJ), por exemplo: em 2010, 2012 e 2014 a apuração foi encerrada com sucessivos recordes, sendo os resultados conhecidos às 18:30 h, 17:58 h e 17:39 h, respectivamente. É impossível que numa apuração manual o resultado de uma Zona que tem 53 mil eleitores – divididos em 160 seções espalhadas por 29 locais de votação – seja conhecido apenas 39 minutos após o encerramento da votação! Convém lembrar que na época da votação em papel a divulgação do resultado ocorria alguns dias após a votação.

Apesar da incessante repetição do mantra “há fraude nas urnas eletrônicas3, deve-se lembrar que jamais se provou algo em desabono do atual processo de votação brasileiro. Além de falta de conhecimento, existem muitas fábulas, suposições e teorias da conspiração a respeito, mas nada que não possa ser facilmente esclarecido por quem trabalha na Justiça Eleitoral. As condições da eleição não podem ser repetidas nos testes feitos pelos críticos (que levantam questões teóricas como se práticas fossem): de que adianta provar que a 10 centímetros da urna é possível captar 0,1% da vibração das teclas, se no dia da votação ninguém terá como fazer isso? E, se tentar fazer, além disso não servir para nada, será preciso contar com a conivência de eleitores, mesários, pessoal de apoio da Justiça Eleitoral, fiscais de partidos, servidores, chefes de cartório, juízes, promotores... 

Assim, embora nenhum sistema eletrônico do mundo seja cem por cento seguro e seja sempre necessário reforçar a segurança eletrônica, o fato é que o Brasil tem a segurança necessária para garantir o sigilo do voto de todos os cidadãos, com um resultado rápido e correto, sem que isso seja alcançado em qualquer parte do mundo. Já se a votação for manual...

A prova de que não há fraude na votação? Vejamos: é por todos sabido que quatro dias após a eleição presidencial de 2014 o maior partido de oposição – derrotado por estreita margem de votos – pediu uma auditoria nas urnas eletrônicas, o que foi acolhido pelo TSE. Até de Campos foram remetidos “pen drives” com os resultados das seções. Em outubro último chegou-se à conclusão de que não houve fraude, o que foi solenemente ignorado pelas redes sociais4-5. Isso sem contar o fato de que todos os programas das urnas eletrônicas são postos à disposição dos partidos antes e depois das eleições...

Observemos os simples fatos de que antes da eleição é impresso um boletim em cada urna chamado de “zerésima” (para mostrar que todos os candidatos estão presentes naquela urna e com “zero” votos cada) e que alguns minutos após as 17 horas do dia da votação os mesários – que são cidadãos de bem, escolhidos entre as pessoas da própria comunidade – afixam na porta da seção eleitoral o resultado, com cópias que são fornecidas aos fiscais, imprensa, Ministério Público e exibidas por vários dias nos Cartórios Eleitorais. Esses mesmos números também são disponibilizados logo após a todo cidadão através dos sites dos Tribunais Eleitorais, publicados pelos jornais e compartilhados pela internet; ainda hoje se pode acessar o site do TSE e observar que... a quantidade de votos de cada candidato é a mesma que foi publicada às 17:05 h do dia da eleição e que em nenhum lugar há registro de diferença...

Existem falhas no processo eleitoral, mas não na votação ou totalização dos votos. Por exemplo: há um excesso de recursos à disposição dos candidatos; as leis não punem adequadamente a propaganda antecipada; falta estrutura para as equipes de fiscalização eleitoral conseguirem coibir os abusos na propaganda; nem sempre é possível reunir provas de que houve compra de votos etc. Também o fato de as seções eleitorais abrirem não ao mesmo tempo em todo o país e sim de acordo com o horário local é algo que pode ser revisto, porque permitiria que a apuração das eleições presidenciais não tivesse ser feita a portas fechadas até o fim da eleição no Acre, o que daria mais transparência a todo o processo.

Apesar de tudo, não parece crível que o processo eleitoral mais avançado do mundo venha de fato a ser atingido pela degradação institucional em curso no país: há evidente (e necessária) pressão dos Tribunais Superiores6 para minimizar os efeitos da crise que assola o país sobre as eleições, até porque embora seja sempre necessário comprar novas urnas, as que foram usadas em 2014 estão, em sua grande maioria, em condições de uso. De qualquer forma, a se confirmar a tragédia anunciada, seria um retrocesso sem tamanho... uma vergonha nacional.

Em suma: é sempre possível melhorar o processo eleitoral e isso é uma constante na Justiça Eleitoral brasileira (quem trabalha lá sabe disso). Porém, o tanto que o sistema eleitoral brasileiro evoluiu desde a implantação das urnas eletrônicas faz com que seja inimaginável que em 2016 retrocedamos à era do voto manual, pois isso representaria uma vergonha para o país (mais uma das muitas que estamos acostumados a ver) e um desrespeito ao princípio da proibição de retrocesso, tão falado no Supremo Tribunal Federal: um país que chega a ser o melhor do mundo em eleições não pode descer a ladeira como se fosse um trem sem maquinista: é maldade demais com nosso sofrido povo.
  
1 – Não confundir “voto em cédulas” (o que acontecia até os anos 90, com o voto escrito num papel e apuração demorada) com “voto impresso” (que se tenta aplicar no Brasil a partir de 2018: aqui a pessoa vota na urna eletrônica e confere seu voto numa impressora). Ambos seriam um retrocesso.
2 - Relatório Campanha de Esclarecimento – TSE Eleições2010. Instituto Sensus. Brasília, novembro de 2010. 
3 – Chama a atenção, por exemplo, a frase “as urnas eletrônicas não são usadas nos EUA”: quando as mesmas pessoas que usam tal argumento são perguntadas sobre a aplicação da pena de morte no Brasil (como se faz nos EUA), dizem que “não temos que copiar tudo que os EUA fazem.” Interessante, não?
4 - Venceslau, Pedro; Chapola, Ricado. Auditoria do PSDBconclui que não houve fraude em eleição de 2014. Jornal O Estado de São Paulo, 11 out 2015.
5 - Ulhôa, Raquel. Auditoria do PSDB nas eleiçõespresidenciais de 2014 não aponta fraude. Jornal Valor Econômico, 04 out 2015.
6 - Nota do TSE à imprensa. TSE. Brasília, 30 nov 2015.


O título da postagem é o nome de uma música de Pepeu Gomes e Moraes Moreira, lançada por este em 1979 (gravadora Som Livre).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Este é um blog de opiniões.
As postagens não são a tradução da verdade: apenas refletem o pensamento do autor. Os escritos podem agradar ou desagradar a quem lê: nem Jesus Cristo agradou a todos...

Eu publico opiniões contrárias à minha, sem problema algum. A não ser que eu o faça expressamente, o fato de liberar um comentário não quer dizer que eu concorde com o escrito: trata-se apenas de respeito à liberdade de expressão, que muito prezo.

Então por gentileza identifique-se, não cite nomes de políticos nem de partidos políticos brasileiros, não ofenda ninguém e não faça acusações sem provas.

OBS: convém lembrar que a Constituição proíbe o anonimato. Assim sendo, não há direito algum para quem comenta sem assinar: eu libero ou não o comentário se achar que devo.