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Impeachment de Richard Nixon (EUA, 1974) |
Nos dias de hoje temos
visto seguidamente verdadeiras batalhas pelo convencimento da população a
respeito do assunto mais falado em todo o país. Porém, nem sempre as
informações são passadas à população de forma honesta: muitas manifestações sobre
o tema são descaradas fraudes intelectuais, talvez movidas por excessivo apego ao poder ou desmedida sede de alcançá-lo. Não falo dos cidadãos em geral e
sim dos formadores de opinião e até de autoridades que – por ingenuidade ou
má-fé – simplesmente não param para ler as regras do procedimento sobre o qual
estão a emitir opinião.
Regras existem... e muitas! Então, se
há previsão na Constituição e nas leis do país, a primeira conclusão que se
pode chegar sobre o assunto é que tachar como “golpe de estado” o manejo do
impeachment dificilmente poderá ser ser creditado à ingenuidade, antevendo-se mesmo a má-fé: que raio de golpe é esse que está previsto
desde 1891? Veja o artigo 53 de nossa primeira Constituição:
Art 53 - O Presidente dos Estados Unidos do Brasil será submetido a processo e a julgamento, depois que a Câmara declarar procedente a acusação, perante o Supremo Tribunal Federal, nos crimes comuns, e nos de responsabilidade perante o Senado.
Como um instituto que há 23 anos foi tido como a redenção do país hoje é visto como golpismo? Em 1992, no
voto condutor do Mandado de Segurança nº 21.654 (impetrado pelo então
Presidente da República), o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal
Federal, afirmou categoricamente:
“O impeachment
traduz, em função dos objetivos que persegue e das formalidades rituais a que
necessariamente se sujeita, um dos mais importantes elementos de estabilização
da ordem constitucional, lesada por comportamentos do Presidente da República
que, configurando transgressões dos modelos normativos definidores de ilícitos
político-administrativos, ofendem a integridade dos deveres do cargo e
comprometem a dignidade das altas funções em cujo exercício foi investido.”
Não entro aqui no mérito
da questão. Falando em tese: o impeachment é um instrumento previsto na
Constituição, cabível quando o governante – no caso o Presidente da República –
praticar crime de responsabilidade (sobre o tema remeto o leitor à postagem “Ascensão e Queda São Dois Lados da Mesma Moeda, de 08/09/15). Ocorre que, apesar do
nome, de prática de crime não se trata: a questão seria melhor se fosse chamada
de “atribuição de responsabilidade”, porque talvez essa expressão revelasse melhor a
verdadeira gênese do instituto, que não é da área criminal1 e sim político-administrativa2. Tanto a matéria não é criminal
que a denúncia não cabe ao Ministério Público e sim a qualquer cidadão e o
julgamento do Presidente é feito pelo Senado Federal, não pelo Supremo Tribunal.
Art. 85.
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem
contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a
existência da União; II - o livre exercício do Poder
Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes
constitucionais das unidades da Federação; III - o
exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV
- a segurança interna do País; V - a probidade na
administração; VI - a lei orçamentária; VII
- o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo
único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas
de processo e julgamento.
Destaque-se que até hoje
não foi feita a lei específica exigida pela Constituição para casos do tipo.
Longe de haver aí alguma nulidade, em razão disso vigora – naquilo que não
contrariar a Constituição – a Lei 1.079/50 que, com a confirmação do STF, foi
usada em 1992 no impeachment de Fernando Collor. Então, querer exigir que no processo de impeachment existam provas inequívocas
de materialidade de crimes é errado (muito menos quando do início do
procedimento, já que a Câmara não julgará nada (quem julga é o Senado) e, por
isso, não haverá provas a serem analisadas num primeiro momento): a previsão das condutas na Constituição e
na lei não é feita em lista exaustiva e sim em termos abertos, não se
exigindo no crime de responsabilidade o rigor necessário para uma
condenação por crime comum: a questão é política, como se vê na previsão legal
do artigo 9º, item 7 da Lei, onde se lê que “proceder de modo incompatível com a dignidade, a
honra e o decoro do cargo” é motivo para o afastamento do Presidente. Está nos anais do
Supremo, na decisão acima citada:
“A
acusação somente materializa-se com a instauração do processo, no Senado. Neste
é que a denúncia será recebida, ou não. Na Câmara, relembre-se, ocorrerá,
apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político,
em que a Câmara verificará se a acusação é consistente, se tem ela base em
alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem
razoável procedência, não sendo a acusação simplesmente fruto de quizílias ou
desavenças políticas”.
Então, quem diz, por
exemplo, que um quadro de corrupção sistêmica, “pedaladas fiscais” e/ou a
inobservância clara de regras referentes à lei orçamentária dão margem a
impeachment não é A, B ou C: é a lei. Se
o Congresso entender que de crime de responsabilidade se trata, disso se
tratará. Já a afirmação de que o cometimento de atos ilícitos em mandato
anterior não pode ser considerado, é por demais estranha: se o ordenamento
jurídico hoje autoriza a reeleição e não se tratam de atos estranhos às funções
do governante, acaso nossas leis dariam ao
Presidente um cheque em branco para transgredir a lei no último ano de seu
primeiro mandato, sem que a responsabilidade por seus desatinos pudesse lhe ser cobrada posteriormente?
O artigo da Constituição
que trata do início do procedimento na Câmara dos Deputados não especifica por
quem o pedido de impeachment deve ser recebido, antes de passar por uma Comissão Especial e ir para a
votação em plenário.
Art. 51.
Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
I -
autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o
Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;
A Lei do Impeachment
também não determina nada nesse sentido. Então é o Regimento Interno da Câmara
dos Deputados que tem que suprir essa lacuna. E não há invenção alguma nisso, porque
no MS nº 21.564 o Supremo assim entendeu já em 1992. No Regimento:
Art. 218. É permitido
a qualquer cidadão denunciar à Câmara dos Deputados o Presidente da República,
o Vice-Presidente da República ou Ministro de Estado por crime de responsabilidade.
..........
§ 1º A denúncia,
assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, deverá ser acompanhada de
documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los,
com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do
rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo.
§ 2º Recebida a denúncia pelo Presidente,
verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será
lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita,
da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos
os Partidos.
Assim – pouco importando tratar-se de pessoa de boa ou má índole – se o Presidente da
Câmara acata um pedido
de impeachment apresentado na forma da lei, daí em diante resta apenas seguir o procedimento
previsto em lei, porque regra geral pouco adiantará inventar motivos para recorrer ao STF, pois o Judiciário, em princípio, é mero expectador da contenda. Por exemplo: em 1992 o Supremo entendeu que o prazo
para manifestação do denunciado (o então Presidente) seria de 10 sessões, não de 5
como prevê o Regimento Interno, mas além disso não foi.
Pelas regras constitucionais o processo
em si ocorre no Senado Federal, mas somente após autorização da Câmara. O
julgamento, neste caso, é dirigido pelo Presidente do Supremo Tribunal, num clássico
exemplo de aplicação da famosa “teoria dos pesos e contrapesos”:
Art. 52.
Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da
República nos crimes de responsabilidade (...);
..........
Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II,
funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a
condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado
Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de
função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
..........
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
..........
II - nos
crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
..........
§ 2º Se,
decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído,
cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do
processo.
Assim, se a Câmara dos
Deputados autoriza por 2/3 de seus membros (342 votos) o início do processo
contra o Presidente, o Senado Federal é comunicado, tem que iniciar o processo e com isso a autoridade fica suspensa do cargo, havendo prazo de 180 dias para o fim do processo. Nesse período o Vice-Presidente assume o cargo. Caso o Senado
entenda, também por 2/3 (54 votos) que a atribuição de responsabilidade
procede, o Presidente é definitivamente afastado e por oito anos não pode exercer qualquer
função pública, eletiva ou não, sendo sucedido pelo até então Vice-Presidente, que estava no exercício da Presidência. Sendo o titular absolvido, retoma imediatamente o cargo
para o qual foi eleito.
Certo é que – independente do que cada pessoa torce para que aconteça ou do que de fato ocorrerá – em qualquer dos casos citados cumprem-se as regras constitucionais e legais em vigor no país e isso é extremamente
saudável para a democracia3, não havendo qualquer chance de "perda de conquistas democráticas", porque tais conquistas são de toda a sociedade, do país e não deste ou daquele eventual ocupante deste ou daquele cargo – a menos que se trate de alguém ou de algum grupo que suponha ter o monopólio da virtude ou pretenda perpetuar-se no poder, usando apenas o argumento de que a ele se chegou através do voto: Hitler também foi eleito e vimos no que deu...
1 – Embora
a Lei do Impeachment determine o uso subsidiário, no que couber, do Código de
Processo Penal.
2 – Uadi
Lammêgo Bulos (2009) define crimes de responsabilidade como “infrações
político-administrativas atentatórias à Constituição, tipificadas na legislação
federal”. O Supremo Tribunal Federal tem alguma jurisprudência nesse
sentido, mas como o tema não é muito usual, pode ser que novas composições da
Corte - e eventuais questões conjunturais - levem a entendimento no sentido de que se trate de norma penal, o que não parece ser uma tendência.
3 - A redemocratização do Brasil ocorreu em 1985. Apenas 7 anos depois o primeiro Presidente eleito em 30 anos sofreu impeachment e a democracia não ruiu. Por que motivo haveria ela de fracassar agora, passados 30 anos do fim da ditadura???
Esclarecedor meu amigo Marcelo Bessa!
ResponderExcluirCompartilhado para que outros entendam melhor o processo.
Um abraço.
Att. Giovanni Gusmão
Obrigado por suas palavras, Giovanni!
ExcluirEsteja sempre por aqui.
Valeu!