Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

domingo, 8 de janeiro de 2017

Jogando a criança fora junto com a água da bacia: lei campista que proíbe remoção de veículos quando o dono estiver presente é ilegal e inconstitucional

Lei 8.749/17
Por vezes o legislador pretende fazer boas coisas, mas extrapola suas atribuições ou, a título de corrigir determinados males, acaba criando outros. Às vezes a autoridade que sanciona uma lei tem a melhor das intenções, mas acaba criando um monstro. Foi o caso da Lei nº 8.749, de 04 de janeiro de 2017, do município de Campos/RJ: visando combater pontuais erros e desmandos de alguns agentes de trânsito (leia), a lei acaba por inviabilizar o trabalho da imensa maioria, que trabalha corretamente. Vejamos (grifos nossos):

Art. 2º- A medida administrativa de remoção do veículo por reboque público ou por empresa prestadora de serviços neste Município, só será cabível quando o responsável pelo veículo não estiver presente para efetuar a sua remoção.

De acordo com a regra agora em vigor na cidade de Campos, estando o dono ao lado do carro, poderá estacionar em frente a uma garagem, ocupar a vaga de uma ambulância, parar na vaga reservada a idosos, "bater pega", trancar cruzamentos, dar "cavalinho-de-pau", parar em frente a hidrantes ou pontos de ônibus, estacionar na ciclovia, em fila dupla ou na contramão... 

Criou-se situação esdrúxula! Campos criou uma nova figura jurídico-administrativa: pasme-se, mas na parte final do artigo acima quem tem que "efetuar a remoção" de veículo irregularmente estacionado é o próprio dono, não sendo a mesma cabível quando o responsável pelo veículo estiver presente". Assim sendo, em Campos o motorista pode transgredir as regras, admitir que está errado e ainda assim olhar para o Guarda e afirmar categoricamente que não vai remover o carro nem permitir que outra pessoa ou órgão o faça, apenas por estar presente ao local onde ele próprio cometeu uma infração... e ainda assim estará fazendo apenas o que a lei lhe permite!!! Traduzindo: o Guarda de Trânsito em Campos virou um fantoche, uma marionete na mão dos motoristas, sejam eles cumpridores das leis ou não; o motorista cumpridor das regras de trânsito em Campos virou otário; o motorista que, estando errado, "permitir" a remoção do carro virou "boca aberta"... Mas a lei não para por aí:


Art. 3º, Paragrafo Único - Servirá de prova da presença do responsável pelo veículo, dentre outros meios de prova, foto e/ou filmagem do momento do içamento do veículo, em que na imagem possa ser identificado o responsável, o veiculo e o reboque, não podendo o agente ou funcionário obstar ou dificultar a obtenção da prova.

Art. 4º - Presente o responsável pelo veículo estacionado irregularmente e se mesmo assim for efetuada a remoção, ocorrerá:
I - Multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a ser paga por quem, na inobservância desta Lei rebocou e/ou autorizou o reboque.

II - Suspensão por 30 (trinta) dias ao Agente de Trânsito que determinar a remoção do veículo estando seu responsável presente.

Fica claro que a lei não atende ao princípio da razoabilidade: por mais absurda que seja a transgressão, que Guarda vai querer determinar que um carro seja rebocado se sabe que, aparecendo o dono, uma "selfie" do momento do reboque lhe custará multa de mil reais e ainda suspensão por trinta dias (consequentemente sem salário)? Como a lei parte do princípio de que todos os Guardas fazem remoções de veículos de forma abusiva, o serviço de fiscalização das infrações de trânsito ficará seriamente prejudicado, pois o máximo que o pessoal da área fará será anotar a multa e sair de perto: a título de exemplo, se o dono aparecer após o Guarda ter pacientemente esperado por meia hora, chamado o reboque, colocado os lacres nas portas e içado o veículo à carroceria do caminhão... mas ainda assim a "selfie" for feita nesse último momento, mesmo que o motorista esteja de má-fé todo o serviço estará perdido e quem se dá mal não é o infrator e sim o Guarda! 

Art. 5º - A multa imposta no inciso I do Art. 4º será revertida ao proprietário do veículo como antecipação de indenização por perdas e danos, independentemente das medidas judiciais que por ventura o proprietário venha promover.

Ocorre que, por uma questão de formalidade, essa lei é claramente inconstitucional, pois só a União pode legislar sobre trânsito e transporte (competência privativa), conforme previsto na Constituição da República, sendo que não há lei complementar que autorize nem mesmo os Estados a fazê-lo, quanto mais os Municípios, que só podem suplementar regras:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
.........
XI - trânsito e transporte
.........
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

O Código de Trânsito delimita a atuação municipal:


Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:      (Lei 13.154/15)  
        I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
.........
        VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;

Interessante notar que em seu artigo 1º fica claro que a Lei campista pretende dar cumprimento às regras que coíbem o estacionamento irregular de que trata o artigo 181 do CTB, mas acaba por inviabilizá-lo, em razão do seguinte: há clara confusão entre os temas "retenção" (art. 270 do CTB, quando é possível sanar a irregularidade no local da infração) e "remoção" (abaixo) e em razão disso entende a lei que esta pode ser obstada pela presença do motorista, quando não pode (bom senso ajuda sempre). A prova de que a lei campista está errada está no fato de que o Código de Trânsito prevê a notificação do proprietário por ocasião da remoção do veículo:


Art. 271. O veículo será removido, nos casos previstos neste Código, para o depósito fixado pelo órgão ou entidade competente, com circunscrição sobre a via.
           § 1o A restituição do veículo removido só ocorrerá mediante prévio pagamento de multas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica. (Lei 13.160/15)  
.........
         § 4º  Os serviços de remoção, depósito e guarda de veículo poderão ser realizados por órgão público, diretamente, ou por particular contratado por licitação pública, sendo o proprietário do veículo o responsável pelo pagamento dos custos desses serviços.       (Lei 13.281/16)  
       § 5o O proprietário ou o condutor deverá ser notificado, no ato de remoção do veículo, sobre as providências necessárias à sua restituição e sobre o disposto no art. 328, conforme regulamentação do CONTRAN.  (Lei 13.160/15)
      § 6º  Caso o proprietário ou o condutor não esteja presente no momento da remoção do veículo, a autoridade de trânsito, no prazo de 10 (dez) dias contado da data da remoção, deverá expedir ao proprietário a notificação prevista no § 5º, por remessa postal ou por outro meio tecnológico hábil que assegure a sua ciência, e, caso reste frustrada, a notificação poderá ser feita por edital.    (Lei 13.281/16) 
.........
           § 9o Não caberá remoção nos casos em que a irregularidade puder ser sanada no local da infração.     (Lei 13.160/15)
.........
       § 13.  No caso de o proprietário do veículo objeto do recolhimento comprovar, administrativa ou judicialmente, que o recolhimento foi indevido ou que houve abuso no período de retenção em depósito, é da responsabilidade do ente público a devolução das quantias pagas por força deste artigo, segundo os mesmos critérios da devolução de multas indevidas.  (Lei 13.281/16)  


Assim, se há lei nacional determinando a notificação do condutor quando da remoção do veículo, é evidente que não pode haver lei municipal impedindo que tal fato ocorra, sendo flagrante a ilegalidade, já que a lei menor não pode contradizer a que lhe é superior, o que mais ainda se escancara quando o Município dá ao infrator a faculdade de permanecer no erro apenas por estar presente ao local (já que fica impedida a remoção), quando a União não o faz. E ainda por cima prevê uma absurda multa de mil reais e suspensão de trinta dias para o Guarda de Trânsito que quiser fazer o que o Código de Trânsito determina!!!... 

Mais ainda: em nossa amada Campos dos Goytacazes em virtude dessa nova lei uma ordem legal para a remoção do veículo, dada pela autoridade de trânsito com base no Código de Trânsito... torna-se ilegal!!! Na prática, em Campos o artigo 195 do Código de Trânsito está "revogado":


Art. 195. Desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes:
        Infração - grave; Penalidade - multa.

Em suma: se o Município não revogar essa lei desproporcional, irrazoável, ilegal e inconstitucional, será necessário que o Ministério Público acione o Poder Judiciário para declarar a inconstitucionalidade da Lei 8.749/17, independente de os cidadãos acharem bom o fato de agora poderem "se vingar" dos Guardas. Não pode a própria Administração Pública - a título de corrigir eventuais excessos dos agentes públicos - liberar excessos dos particulares. É disso que fala o ditado popular: "não se pode jogar a criança fora junto com a água da bacia.

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