Texto publicado na coluna "Endireitando", que assino quinzenalmente no Jornal Notícia Urbana.
Neste país já estamos fartos de saber que muita coisa errada
é tida como certa. Aliás, o mote desta coluna é exatamente mostrar que há casos
em que idéias que estão arraigadas na cabeça das pessoas podem não ter
fundamento jurídico ou não ter a extensão que costuma lhes ser dada. Exemplo
disso é a confusão que se faz quando o assunto é o direito dos pedestres que –
por serem inegavelmente o lado mais frágil do trânsito – acabam sendo tidos como
necessariamente “bonzinhos”, restando aos motoristas a pecha de “maus”, naquele
clima de “nós contra eles” que tomou conta da sociedade brasileira na última
década.
Repare que normalmente se culpa o motorista pelo acidente,
mas quase ninguém se posiciona contra o pedestre: mesmo em casos onde há todas
as evidências, falar que determinado atropelamento foi causado por imprudência
do transeunte é correr risco de ser tachado como favorável à violência no
trânsito, etc. Aqui também não se fala contra: apenas não se fala
obrigatoriamente a favor, porque a lei e os fatos é que estão em questão.
Da
mesma forma que não se exige que a pessoa seja especialista em Direito para
saber que não se pode interpretar um artigo de lei sem analisar o contexto em
que ele está inserido (que é o que mais se vê hoje em dia), também não precisa
ser especialista em trânsito para observar certos comportamentos no cotidiano
das cidades: basta sair às ruas....
Uma coisa é a necessária e importante conscientização dos motoristas
para evitar atropelamentos (art. 29, § 2º do Código de Trânsito Brasileiro –
“CTB”); outra coisa completamente diferente é tratar como se fosse desnecessária
a conscientização também dos pedestres quanto às suas obrigações para evitar
atropelamentos. Recentemente o Instituto de Trânsito de Campos fez uma correta campanha
a respeito, onde foi ressaltado o quanto é importante o comprometimento de todos
para a segurança no trânsito, até porque ninguém é o tempo todo só pedestre,
motorista, motociclista ou ciclista: por vezes encarnamos mais de uma dessas
figuras no mesmo dia.
Ocorre que na maioria das vezes as autoridades de trânsito do
país e a imprensa em geral tendem a tratar o pedestre como única vítima do
trânsito, esquecendo-se que pedestres também podem ser multados no trânsito – mas
isso depende de uma regulamentação que nunca será feita – e que o cidadão médio
não sai de casa querendo atropelar ninguém, embora possa também passar por uma
fatalidade: para as pessoas normais é um transtorno enorme ver-se envolvido num
fato que levou alguém a se machucar ou mesmo à morte (evidentemente trata-se
aqui dos cidadãos comuns, não dos que usam carros como armas ou dirigem bêbados).
Pouco se noticia que já houve caso onde, por imprudência, um pedestre foi
condenado a pagar multa ao atropelador... e as redes sociais crucificam o motorista,
mesmo quando a vítima ziguezagueava, bêbada, em local escuro de uma rodovia federal...
No Brasil de 2015 algumas observações são necessárias, ainda
que evidentes: em regra a rua foi feita para os carros, destinando-se aos
pedestres a calçada (CTB, art. 254, I), de onde se conclui que, em regra,
quando uma pessoa é atropelada na rua, a culpa é dela (se a vítima é colhida
sobre a calçada ou sob o sinal vermelho, aí sim a questão se vira contra o
motorista); há no CTB proibições específicas também para pedestres; consta que
os pais ainda ensinam os filhos a “olhar
para os dois lados antes de atravessar a rua”; não há notícia de pai ou mãe
que ensine às crianças que “na faixa de
pedestre pode sair atravessando, porque os carros têm que parar para você
passar”, há?
É simples: onde há faixa de pedestres e sinal de trânsito o
pedestre tem que aguardar sua vez? Tem; onde há faixa e agente de trânsito
também é preciso esperar? Sim, é. Por que motivo então as pessoas acham que
onde se tem apenas a faixa pintada no chão elas têm o direito de sair
atravessando feito loucas, forçando carros que estão próximos e em certa
velocidade a freadas bruscas, com risco de acidente? Acaso uma batida entre
dois carros é “melhor” do que um atropelamento? Não! Ambos devem ser evitados.
Ocorre que, se em determinado local a autoridade pública não instalou semáforo nem
deslocou para lá agentes de trânsito, subentende-se que não há movimento tão
grande a ponto de justificar tais ações e que a faixa de pedestres está apta a
resolver o problema naquele trecho: basta o pedestre aguardar a hora certa e o
motorista prestar atenção redobrada ao se aproximar do local e a travessia pode
ser feita de forma segura.
Todos lembram de citar que Código de Trânsito (art. 70) prevê
que o pedestre tem direito a prioridade, mas se esquecem de que a mesma lei
também prevê (art. 69) que “para cruzar a
pista de rolamento o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta,
principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos”,
mesmo na faixa de pedestres. Assim, para ter direito à prioridade, antes o cidadão
tem que verificar se é possível atravessar a rua sem causar acidentes –
exatamente como nossos pais nos ensinaram e nós ensinamos a nossos filhos.
Porém, o que frequentemente se vê hoje é a conduta arrogante
de muitos pedestres que adentram a faixa mesmo quando há risco e olham em tom
desafiador para os motoristas (como que a dizer: “dane-se o mundo, porque eu
estou passando”). Por outro lado, já se viu motorista parando o carro em plena Av.
Pelinca e fazendo sinal para uma ou duas pessoas (que ainda estavam na calçada)
passarem – mesmo que para fazer essa “boa ação” dez carros tenham sido deixados
a esperar. Pior: há registro de autoridades de trânsito que fazem campanhas
contra os carros (“a cidade deve ser mais dos pedestres e menos dos carros”:
como assim???), que acham que a cada faixa de pedestres o veículo tem que parar
– para só depois retomar a marcha – ou que é certo parar o trânsito de ruas
movimentadas para a passagem de uma só pessoa, mesmo a 20 metros de um sinal...
Se toda vez que um pedestre colocar o pé na faixa os carros
tiverem que parar, o trânsito vai dar um nó em todas as cidades (lugares como Brasília e Gramado são casos à parte); o Código de Trânsito (art. 69, II) exige que o pedestre
espere, conforme o caso, o semáforo ou a ação do guarda de trânsito para cruzar
a pista. Com mais razão ainda exige-se que o pedestre verifique se há condição
de realizar a travessia, não podendo atravessar a rua não ser dessa forma: se o
transeunte já estiver atravessando segundo as citadas regras, aí sim – e só
assim – o carro deve dar prioridade ao pedestre.
Quando a lei entende que o veículo tem que parar o faz
expressamente: o Código prevê multa para quem “deixar de parar” o veículo em
passagens de nível (onde passam trens – art. 212) ou quando alcançar passeatas,
desfiles, cortejos etc (art. 213). Porém, no artigo logo a seguir a multa é
para quem “deixar de dar preferência de passagem ao pedestre” (art. 214), não
se usando a expressão “deixar de parar”. Só há preferência para o pedestre se
ele antes verificar se é possível atravessar (não existe na lei essa história
de esticar o braço, levantar o polegar nem “colocar o pé na faixa”: não há esse
automatismo): caso se tratasse da mesma regra o verbo seria o mesmo...
Detalhe que quase ninguém percebe, mas que está no chamado
“espírito da lei”: se todos fizerem a sua parte não precisa parar o trânsito e
não há risco para o pedestre. Se foi necessário frear de forma brusca é sinal
de que o pedestre errou, por não avaliar as condições de atravessar com
segurança, pois não se pode entrar na faixa para fazer os carros pararem:
o certo é usar a faixa após verificar se é seguro atravessar e em
decorrência disso é que os carros devem dar preferência. Observe: se o
pedestre avalia o momento certo de atravessar, vai chegar ao outro lado da rua
em sem se arriscar; se de fato usa a faixa de forma segura, o carro não precisa
parar, bastando diminuir a marcha, se for o caso, para dar passagem. A
preferência para o pedestre não é um cheque em branco, não o autoriza a se
jogar na frente dos carros!
A verdadeira intenção do Código é a busca de harmonia no
trânsito: é verdade que o motorista tem que respeitar o pedestre, mas por que a
recíproca não seria verdadeira? E tudo isso (que está na lei, não na cabeça de
quem escreve este texto, nem na de quem inventa campanhas irresponsáveis do
tipo “basta pisar na faixa e pode atravessar”) confirma que, com as leis que
temos e sem que seja “forçada a barra”, não existe obrigação de parar o carro
para o pedestre passar.